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Damião Experiença está vivo

Silvia D. (silvia@cliquemusic.com)

Existe um homem de aparência meio mendiga, perambulando diariamente pelas ruas de Ipanema com enormes dreadlocks e casacas psicodélicas. Até poucos anos atrás, encontrá-lo na rua também significava, na maioria das vezes, levar pra casa um de seus LPs – inicialmente, ele tentaria vendê-lo, mas se você estivesse realmente duro, a bolacha virava presente. Tendo criado o conceito de Planeta Lamma uns 15 anos antes de a lama de Recife servir de berço para o mangue beat, Daminhão Experiênça é hoje um lenda viva da música experimental e vanguardista brasileira.

Há poucos dias, o compositor que "gosta de apanhar de mulher" foi encontrado no meio da rua por Maurício Valladares, fotógrafo, DJ e titular do programa de rádio Ronca Ronca (que vai ao ar toda quarta, às 22h, na Imprensa FM, Rio de Janeiro e pode ser ouvido no site RoNcaRoNca). Um dos cérebros por trás da histórica rádio Fluminense FM, ele não hesitou em convidar Daminhão para se apresentar numa das festas que promove regularmente em casas noturnas cariocas. Na sexta-feira passada, no Ballroom, o solitário cavaleiro da experimentação musical e poética sentou com seu violão (agora com seis cordas) e se pôs a inventar novas versões para suas velhas canções, cuja fama se espalhou no boca-a-boca, ao longo de décadas.

As músicas de Daminhão Experiênça jamais foram executadas em rádio, envoltas que são em poesia crua, sexualmente explícita, carecendo de refrões e de estruturas de canção. Baixos, guitarras bastante distorcidas e bateria se confundem e se fundem às frases mirabolantes, meio faladas, meio gritadas, mas invariavelmente engraçadas e contundentes: "Olha a cara dele/ olha a cara dela/ quando ele casou com ela/ ela não era moça, não/ oh, yeah/ Daminhão Experiênça entrou em cana/ porque um língua grande caguetou/ ele casou com mulher de segunda mão/ já usada pelo cafetão/ pra ele não ficar na solidão". É difícil precisar quantos discos Daminhão produziu sozinho em seu apartamento ao lado da favela do Morro do Cantagalo, mas calcula-se que seja algo em torno de uma dúzia.

Transação intergaláctica
O ex-operador de radar da Marinha Damião Ferreira da Cruz, 68 anos de idade, saiu pela primeira vez na imprensa em 1977, em coluna assinada por Nelson Motta no extinto Jornal de Música e Som. O jornalista assim descreveu o seu som: "Uma transação intergaláctica que engloba guitarra de uma corda só, gritos lancinantes e estratosféricos misturados a letras de um planeta que só ele sabe o nome." O número de cordas em seu violão ia aumentando de acordo com o número do disco que vinha a seguir. No segundo disco, utilizou violão com duas cordas, e assim por diante. Daminhão inventou uma língua chamada Lammês e uma linguagem de música instantânea.

Ele costumava convidar músicos que encontrava pelo caminho para irem à sua casa, conduzindo as improvisações sonoras que surgiam e em cima das quais cantava, e transformando o som captado, qualquer que fosse esse som, no seu produto fonográfico. Depois, o artista prensava os LPs e os embalava em capas impressas em quatro cores. Ele vendia/distribuía o seu disco em suas perambulações pelas ruas do bairro notabilizado em poesias de Vinicius de Moraes. Como ele conseguia financiar seu trabalho é um mistério que permanece até hoje.

"Estou iniciando o movimento para tornar Daminhão Sir. Sir Experiênça", diverte-se Maurício Valladares, num impulso de resgatar o subestimado artista. A única outra apresentação ao vivo de Daminhão de que se tem notícia aconteceu numa outra festa de Valladares, em 1992. A diferença básica daquela ocasião para o recente show foi que, dessa vez, o bardo do desespero apresentou-se sentado. O violão batucado por ele estava praticamente inaudível, mas ninguém parecia se importar. "Tô tão emocionado, esqueci o resto da letra", repetia o incrivelmente humilde Daminhão a cada canção que abandonava pelo metade. E a platéia urrava cada vez mais alto.

Dentro da música popular brasileira, não há concorrentes ou herdeiros para o estilo musical e pessoal inventado por ele. Ao chegar à casa noturna onde se apresentaria na festa de Valladares, foi parado pelos porteiros, que buscaram o anfitrião: "Tem um cara lá fora dizendo que veio do Planeta Lamma!" O violão, Daminhão carrega num saco de lixo verde, amarrado com barbante. A saúde, fragilizada, ainda não interrompeu sua produção. Ele tem material novo gravado – só falta lançar. Enquanto isso, pode-se encontrar CD-Rs piratas nas galerias de São Paulo, o que é bom e ruim. Bom, porque garante a continuidade da divulgação do trabalho de um artista ímpar. Ruim, porque esse artista ímpar, já um senhor, não vê um tostão em troca do divertimento que proporciona a todos os que o escutam. Há ainda a possibilidade, remota é verdade, de se encontrar um de seus LPs em sebos de disco. É só procurar pelas capas que têm fotos de um homem negro, sorridente, rastafari grisalho. Daminhão Experiênça.

Original: http://cliquemusic.uol.com.br/br/Servicos/ParaImprimir.asp?Nu_Materia=1148


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